sexta-feira, 5 de julho de 2013

Amor, oculto amor

          Às vezes tenho vontade de impor alarido ao som de minha alma. Confidenciar aos ventos este segredo singular e permitir que o conduzam desde os fins aos confins. Tornar público este amor oculto; este desejo que me faz pertencer-te por vontade. Gostaria de dizer ao mundo a força deste calor, sem me preocupar com as más línguas de uma decência sonsa, que mais julga do que respeita. Mas falta-me coragem. Eu - quem diria?! - com receio de expressar emoção. Mas tenho, sim, este temor. Porque tão forte quanto o amor que sinto é o zelo que te tenho. Prefiro preservar-te desta verdade. Sei que talvez sintas o mesmo - teus olhos denunciam -, mas prefiro contar com teu riso dúbio a correr o risco de perdê-lo. Por isso não te faço saber de tudo. Dentre os leitores desta carta, muitos, sem dúvida, dedicarão tempo e faculdades a tentar decifrar quem és. Como são teus olhos, teu riso, teu rosto e até mesmo teu sexo. Não me incomodo. É uma peça que prego aos curiosos. Que percam seu tempo conjecturando sobre tua imagem; será bom para mim tal rebuliço, enquanto me deleito em tua essência. Um pouco de mistério é bom tempero para estórias de amor. Muitos te conhecem. Portanto, és deles também de maneira genérica - por isso permito que tentem te decifrar; mas apenas a mim pertence o melhor de tua alma. Quero-te a todo o momento. E quero o teu amor tão certo quanto o tenho hoje: firme, belo e sincero. [Cúmplice]. E assim, pra não correr o risco de te perder para as massas mexeriqueiras, prefiro dizer que te tenho amor de amigo, sentindo amor de amante. Mas não duvide. Meu amor é verdadeiro, é puro; e será eterno enquanto dure a vida.

sábado, 30 de março de 2013

No meio da noite escura

      Era uma noite igual a todas as outras. Tudo parecia normal... Ele, como de costume, lia um livro de ficção na varanda dos fundos. Fazia calor e o céu estava coberto de estrelas. Era possível ver uma porção numerosa delas. Lia silencioso, intercalando a leitura com pequenos goles na xícara de café. Estava atento a cada nuança, cada movimento das personagens. Nada passava despercebido a seus olhos de leitor voraz. Seria uma leitura fascinante, se ele não sentisse aquilo... O livro que tinha nas mãos emanava boas emoções e uma ternura profunda. Mas ele não conseguia ver além da tinta no papel. Lia, mas não sentia a estória... Escolhera aquele livro depois de tanto tempo porque esperava reencontrar nele o encantamento perdido desde que tudo aconteceu... Há um ano seu sorriso desbotara ao sal de uma lágrima. Não sorria por completo desde então. Na verdade, nunca mais rira...
     Aconteceu de repente... O menino brincava na praça. Eram cerca de vinte horas e a noite estava agradável. Não fazia calor, nem frio, mas um clima gostoso de primavera. Era véspera do dia das crianças e as famílias decidiram fazer uma festa no parque para celebrar a alegria e ternura que os pequenos traziam a suas vidas. Ele hesitou um pouco em participar, porque o Artur era seu único filho e sofrera com sopro no coração quando tinha cinco anos de idade. Desde então o garoto viva sob cuidados redobrados. Temia que entre uma atividade e outra sua respiração parasse e tivesse de ser socorrido às pressas. Mas amava o menino. Faria o que fosse preciso para vê-lo sorrir contente. Ponderou bastante e acabou cedendo, porque sabia que não poderia privar uma criança de brincar. No mais, ele estaria atento a tudo. Onde quer que o menino fosse, iria também. Sentou-se em um banco para ver melhor o filho, que agora brincava de pega com outras crianças. Entre uma arrancada e outra o pequeno Artur olhava para o pai e acenava sorrindo. - Como era doce aquela criança... Sentia saudade da mãe, que o abandonara ainda bebê, mas encontrava no pai o carinho e amor necessários ao seu coração tão frágil, mas tão cheio de ternura... - O pai retribuía os acenos com piscadelas e um sorriso cúmplice... Foi então que tudo aconteceu... O garoto sentiu um pouco de tontura e parou para respirar. Esboçou um pedido de ajuda mal sucedido. Estava sem ar, sentiu a vista esmorecer e desmaiou. Levou menos de quinze segundos até que estivesse nos braços do pai. As crianças choravam assustadas com o que viam, enquanto os adultos lamentavam a triste sorte do homem que vira o filho desmaiar quase morto. Cerca de trinta minutos depois, uma ambulância chegou ao local e levou o menino para o hospital mais próximo. Durante o trajeto os paramédicos tentavam, sem sucesso, reanimar o garoto. Massagens cardíacas, desfibrilação... Tudo o que poderia ser feito foi tentado... No hospital, levaram-no imediatamente para a UTI e fizeram alguns exames. Após longa espera o médico finalmente apareceu para dar notícias ao pai aflito: a criança não morrera, mas estava em coma profundo...
       Um ano havia se passado... Todos os dias ele dava um jeito de ver o filho. O quarto do menino estava cheio de flores, presentes e cartões dos amigos da escola, da rua, e dos parentes mais próximos. Era uma pena que não pudesse sentir a comoção em torno de si. Um ano e nenhuma melhora significativa... Mas o pai acreditava que algo pudesse mudar. Não se importava em gastar todo o dinheiro que tinha. Enquanto pudesse manter aquele fio de esperança, faria o que fosse preciso para ter seu filho novamente aos braços...

      Ele lia disperso quando algo chamou sua atenção. Notou que a noite estava mais clara. Ouviu ruídos, sussurros. Pareciam vozes de crianças sapecas. Os meninos brincavam na praça, mas essas vozes não eram as deles. Parecia música... Depositou o livro na mesinha de centro, foi até o parapeito da varanda e olhou para cima. Ficou boquiaberto com o que viu. Era incrível! Jamais imaginou que coisas como aquela pudessem acontecer. Chegou a se perguntar se mais alguém via o que ele via. O fato é que estava sozinho na sacada, e, bem à frente de seus olhos, no céu, as estrelas brilhavam como nunca antes. E não apenas brilhavam com força; mas pareciam dançar. Dançavam ao som de uma música desconhecida, porém encantadora. Que música! Quanto mais olhava as estrelas, mais se deixava assombrar pela visão. As constelações se moviam de forma organizada, como se seguissem passos de uma coreografia, ou braçadas um regente. Era mesmo impressionante... Não sabia se era real, ou se estava delirando. A única certeza que tinha era a de que jamais esqueceria aquele momento...
            De repente, as estrelas pararam a dança. Voltaram ao seu lugar e tudo silenciou novamente. Sem entender ele continuou olhando para cima, confuso. Mas tudo o que via agora era um céu comum, sem estrelas brilhantes, sem vozes de música, sem risos... Baixou os olhos e sentiu uma lágrima salgar seus lábios. Lembrou-se do filho que completava dez anos naquela noite e lamentou profundamente a dor de sua saudade. Deixou-se cair ao chão frio e finalmente se permitiu chorar pela culpa que o oprimia havia um ano. Julgava-se réu pelo estado do filho e acabou deixando a mágoa sufocar o amor que sentia. Pranteou por minutos ininterruptos; tempo suficiente para que as estrelas voltassem a rir. Ainda com os olhos encharcados voltou a elevar a cabeça. Estranhou o que viu. Embora ouvisse o som dos risos, notou que as estrelas não dançavam. Elas brilhavam ainda mais forte que antes, mas se movimentavam em uma mesma direção. Todas paravam ao redor da lua, onde ficavam imóveis... Foi então que notou de onde vinha a música... Sentado em uma nuvem, um menino tocava algo parecido com uma flauta. Ao perceber que era observado, o garoto parou de tocar e fitou aquele homem. Ele era encantador. Sua pele branca era pintadinha com sardas. Tinha os cabelos dourados. Vestia um macacão impecavelmente branco, sob um manto de azul deslumbrante. Seus olhos eram imensos e seu olhar, penetrante. Ainda em silêncio o menino levou a mão ao bolso, de onde tirou um saquinho dourado. Do saquinho tirou um punhado de pó, e com um movimento leve o soprou de sua mão. O homem, perplexo, sentiu uma brisa envolvê-lo ternamente enquanto uma voz de anjo sussurrava em seu ouvido:

--"... Tu porém terás estrelas como ninguém nunca as teve. [...] Quando olhares o céu à noite, eu estarei habitando uma delas, e de lá estarei rindo; então será, para ti, como se todas as estrelas rissem! Dessa forma, tu, e somente tu, terás estrelas que sabem rir!"¹

      Ele sentiu o coração aquecido e não tentou conter o choro remanescente. Uma lágrima pesou no olho esquerdo, e percorreu sua face iluminada até se desfazer nos lábios. Novamente olhou para menino e notou que agora ele sorria... O principezinho guardou o saquinho no bolso e voltou a tocar sua música, enquanto as estrelas dançavam risonhas...

     Mais tarde, a alguns quilômetros dali, um menino olhava as estrelas dançantes e sorria encantado... Acabara de acordar de uma longa noite de sono e ansiava por rever seu pai.


¹ Extraído d'O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupèry.